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14 de novembro de 2012

A descoberta

Quando tinha catorze anos estava com um amigo a jogar ao jogo do sério. Olhos nos olhos testávamos a nossa resistência e então o meu amigo disse-me que eu tinha uma menina maior do que a outra. Nunca tinha reparado. Quando cheguei a casa, pus-me em frente ao espelho e observei atentamente cada pupila. Não só tinha uma menina maior, como um dos meus olhos era mais rasgado e largo do que o outro. Nesse momento, tentei fechar cada um dos meus olhos, mas enquanto conseguia fechar o direito, mantendo o esquerdo aberto, não conseguia fazer o contrário. Comecei também por tapar um olho com a mão e depois o outro e tinha uma visão diferente. Quando tinha o direito tapado via bem, mas quando tinha o esquerdo tapado, via tudo turvo. Repeti várias vezes e ora aproximava-me, ora afastava-me do espelho. Tinha uma visão diferente se estivesse de perto ou de longe. Decididamente via mal. Contei à minha irmã e ela, que usava óculos, disse-me que eu devia passar no oculista. Ainda demorei uma semana a ir lá. Sabia que davam consultas gratuitas ao sábado de manhã. Lembro-me de me sentar em frente a um aparelho em que tinha de olhar por um canudo para uma imagem e fixá-la por instantes. Acho que era um pato ou um avião. Depois de o ter feito com ambos os olhos a médica disse-me que não podia fazer nada por mim e que eu deveria consultar urgentemente um oftalmologista. Fiquei bastante alarmada e contei à minha irmã. A falta de diagnóstico da parte da oculista não nos dava qualquer índice do que podia estar errado. Demorei alguns meses para ir a um oftalmologista. Na verdade não me sentia mal, não me doía nada. Apenas notava que tinha olhos assimétricos e que via pior de um lado do que outro, mas isto apenas quando tapava o olho esquerdo. Conseguia ler tudo perfeitamente e mesmo nas aulas lia bem o que estava escrito no quadro. Não me lembro do nome do oftalmologista, pois apenas fui consultada por ele duas vezes. Lembro-me que era uma pessoa muito simpática e atenciosa. Pediu-me para ler ao longe uma série de letras projetadas na parede, primeiro com ambos os olhos a descoberto e depois individualmente. Comprovava-se que o meu olho direito tinha uma visão muito fraca em relação ao esquerdo. Depois pediu-me para observar pelo mesmo aparelho que a oculista tinha usado e após alguns instantes fez-me perguntas como: se já alguma vez tinha tido um choque ou acidente grave na zona dos olhos. Se havia alguém na minha família com problemas de visão. Se tinha dores de cabeça ou enjoos. E depois disse coisas que nem percebia bem. Falou-me de uma operação e, como tinha ido à consulta  com o meu irmão, disse-lhe que ele me devia levar ao Hospital de São João, às urgências, e que aí eu deveria queixar-me de dores de cabeça muito fortes e enjoos. Receitou-me gotas que deveria colocar duas vezes por dia e uns óculos. Fizemos o que nos disse e fomos diretos para o Hospital de São João. Depois de várias horas de espera lá fui encaminhada para a oftalmologia e depois de alguns exames e de o médico me ter perguntado o que estava ali a fazer, disse-lhe que o meu oftalmologista tinha dito qualquer coisa sobre eu precisar urgentemente de ser operada. Ele disse que ele não tinha nada a ver com isso, que aquilo eram urgências e não consultas de especialidade e depois de se ter certificado que tipo de gotas me tinham sido receitadas, mandou-me para casa. Passaram-se meses até ter consultado de novo o meu oftalmologista. Fez um exame rotineiro e perguntou-me qual tinha sido o resultado da visita ao hospital. Ficou intrigado com a resposta e por fim escreveu uma carta a um doutor amigo e disse-me para voltar ao hospital e pedir consulta por recomendação com aquele médico. Deu-me a carta. Na verdade já nem sei se foi ele que marcou a consulta ou se eu marquei a consulta, mas a verdade é que consegui a consulta com o doutor Cotta. Estávamos em meados de maio de 1998 nessa altura. Assim que entrei na sala de consultas e me sentei em frente ao médico entreguei-lhe a carta que o meu oftalmologista me tinha dado. O doutor leu-a e depois começou a examinar os meus olhos. Não me perguntou quase nada. Pedia-me para espreitar por aqui e por ali e ora punha gotas num e noutro olho e pedia para fixar este ou aquele ponto através de um aparelho. No final perguntou-me se poderia fazer uma operação no início das férias de verão, para não prejudicar o meu ano escolar. Ou seja, um mês depois voltava ao hospital para lá ficar internada e assim ser operada ao meu olho direito. Havia as palavras glaucoma e tensão ocular, mas era o quê? De certeza grave, ou não teria de ser operada com tanta urgência.
O tempo normal de internamento é três dias. No primeiro é feita uma série de exames, no segundo é-se operado e no terceiro, não havendo nenhum entrave, volta-se para casa. Eu fiquei cerca de 5 dias. Foi o próprio doutor Cotta que me operou, mas eu nem o vi nesse tempo que lá estive. Lembro-me de ir para a sala de operações e me confundirem com um rapaz. De uma das enfermeiras me perguntar se me sentia sonolenta e pouco depois de ter perdido os sentidos. Despertei assustada do vazio e já tinha o olho tapado. Levaram-me de volta para o quarto nessa altura e voltei a adormecer. Quando acordei estava sozinha no quarto, estava escuro e eu comecei a chorar com o receio. Apalpei o penso por cima do olho, que entretanto estava ensopado e arrependi-me de chorar. De vez em quando os enfermeiros espreitavam e perguntavam se estava tudo bem. Expliquei que tinha o penso molhado e eles trocaram-mo. Mais à noitinha passei o dedo pelo olho e sentia-o mesmo flácido. Tinha receio de ter perdido o olho. Na realidade não era normal o olho estar assim e foi por isso que fiquei mais dias no hospital. Todas as manhãs vinha um médico diferente à minha cama e me perguntava o que estava ali a fazer. Apenas sabia dizer que por ter o olho demasiado flácido me disseram para ficar mais tempo. Ninguém soube explicar porque tinha assim o olho. Ao quinto dia deram-me alta e marcaram-me nova consulta para daí a uma semana. De início tinha consultas semanais, mas depois foram diminuindo para mensais, semestrais e depois anuais. No início foi complicado. Era consultada por médicos diferentes, que de cada vez me perguntavam as mesmas coisas e até me receitavam gotas que eram contra-indicadas para pessoas com glaucoma. Quando os confrontava com isso, apenas diziam: então não tomes.
Depois da operação não via melhor; o meu olho estava muito fechado em relação ao esquerdo e muito vermelho; tinha uma cicatriz na córnea, por cima da íris; e tinha de continuar a tomar gotas. Continuei a ir a estas consultas durante os quatro anos seguintes. Repetia vários exames de acuidade visual, pressão ocular e esporadicamente fazia campos visuais. Os médicos insistiam para que tomasse sempre as gotas e também para que massajasse o olho diariamente. Explicaram-me que a operação tinha consistido naquela pequena cicatriz que servia para aliviar a drenagem de líquidos no meu olho. Era importante manter essa cicatriz aberta. Explicaram-me ainda que se não massajasse o olho e tomasse as gotas arriscava-me a ter um olho estrábico. Também baixei a dioptria de -0,4 para -0,25 o que significava que tinha uma visão menos turva e mais apurada. Mudava de lentes anualmente. Durante estes quatro anos nunca levei a sério o que me tinha acontecido. A única diferença para mim era ter de usar óculos, pois de resto não sentia nenhuma outra alteração. Tomar ou não as gotas não me parecia ser assim tão importante e as idas às consultas também se tornavam monótonas e até dispendiosas, uma perda de tempo. Aos 21 anos deixei de ir às consultas e também deixei de tomar as gotas. Para mim glaucoma significava gotas, que continham uma lista enorme de efeitos secundários equivalentes aos de uma pílula contracetiva. Significava tensão alta que impedia que os fluidos corressem livremente no olho; além do mais corria o risco de "contagiar" o olho são. E que era uma doença que se manifestava principalmente em pessoas muito mais velhas. Estive dois anos sem me lembrar sequer da doença, apenas com dois episódios: um deles em que comecei a ver tudo branco por alguns momentos e que nunca percebi porquê; o outro foi mais grave, pois doía-me imenso o olho direito, estava inclusive vermelho e inchado e tinha violentas dores de cabeça e enjoos. Nessa altura fui ao hospital de Santa Maria (já vivia em Lisboa) e pedi para ser vista por um oftalmologista. A consulta foi um autêntico desastre, pois apesar de dizer ao médico que suspeitava ser uma urgência de glaucoma, assim que ele percebeu que eu não estava a ser acompanhada por nenhum especialista, nem a tomar nenhumas gotas, disse-me que não tinha nada a ver com isso e que os enjoos se deviam certamente a qualquer coisa que eu tinha comido, mandando-me de seguida para outro médico. Fiquei mesmo irritada com a situação e tinha a certeza de que não podia ser outro motivo se não o glaucoma para me sentir assim. Voltei para casa e procurei relaxar. Coloquei saquetas de chá morno sobre o olho e lentamente a dor foi passando.
Depois foram mais 3 anos em que não consultei uma única vez um oftalmologista. Sentia dores no olho esporadicamente e ficava vermelho de vez em quando. Nessas altura massajava-o e procurava relaxar, dormir. Aos 24 anos voltei a consultar uma oftalmologista, porque precisava de apresentar um exame geral de saúde para poder concorrer a um curso universitário. Expliquei isso mesmo à médica e ela apenas me disse que o estado do meu olho era lastimável, que tinha desenvolvido uma catarata, tinha uma tensão de 24 mm Hg e que para meu próprio bem deveria voltar de imediato a tomar gotas. Falou-me da possibilidade de ser novamente operada para retirar a catarata. Pediu-me que recolhesse todos os exames que já alguma vez tivesse feito para ela poder fazer um diagnóstico completo. Fiquei impressionada com ela e procurei seguir o que me pediu, mas na verdade o entusiasmo esvaeceu pouco tempo depois e nem pedi o meu histórico no hospital, nem continuei a tomar as gotas. Pensava que o que eu queria mesmo, era que a médica me sugerisse um tratamento alternativo através de cigarros de marijuana. Voltei ao consultório dela cerca de dois anos depois para um exame de rotina e tive de explicar porque tinha demorado tanto tempo a voltar e porque não estava a seguir os conselhos dela. Disse-lhe que não tinha conseguido entrar no curso que queria e ela disse que tinha sido melhor assim. Depois sentou-me basicamente na cadeira e deu-me uma lição. Apontou para um mapa ocular na parede e explicou que o glaucoma tinha incidências sobre o nervo ótico e sobre todas as células nervosas óticas. O nervo deteriorava-se e as células morriam irreversivelmente. Se eu não gostava das gotas que ela me passava, procurava-se outras com que eu me sentisse melhor. Sei que saí do consultório pensando que realmente estava a ser inconsciente, irreverente e que deveria tratar melhor o meu glaucoma. Comprei as gotas que me receitou (Bertocil) que não trazem quaisquer contra-indicações no folhetim informativo e realizei os exames que me pediu. Mudei de lentes e segui à risca todo o tratamento. Os meus campos visuais mostravam que o meu olho direito estava praticamente cego. Não sabia qual era a evolução, pois não tinha nenhum dos meus exames antigos comigo para poder comparar. Sentia efeitos com as gotas, claro, quando me atrasava algumas horas doía-me um pouco o olho. Eram viciantes. Mas nada de enjoos ou dores de cabeça, fadiga, sentimentos suicidas, vertigens, como indicavam as outras gotas que até aí tinha tomado. Daí a seis meses voltei à oftalmologista, mas devo tê-la apanhado num dia mau. Apesar da minha tensão ter baixado, ela continuava desagrada comigo e disse-me que deixava ao meu critério eu continuar a ir às consultas dela ou não. Na realidade, mesmo porque depois do curso fui estagiar para a Alemanha, voltei a ficar 3 anos sem ser devidamente acompanhada. Fui uma vez a uma consulta na Alemanha, procurei uma especialista em glaucoma, a quem expliquei a minha situação e justifiquei que apenas precisava de mais gotas. Ela fez-me um campo visual do olho esquerdo apenas para verificar se havia alguma evolução, mas estava tudo normal. Nesse espaço de tempo nunca deixei de tomar as gotas e assim pude manter a minha tensão regularizada. De vez em quando ficava com o olho vermelho, sem que houvesse um motivo para isso.

Agora estou finalmente a viver na mesma cidade há quase dois anos e penso ter encontrado uma oftalmologista com quem seguir um tratamento acompanhado. Entretanto pedi todos os exames ao Hospital de São João e assim pude mostrá-los à minha nova oftalmologista de modo a obter um diagnóstico. O diagnóstico neste caso não serve para curar, apenas para perceber aquilo com que terei de conviver o resto da minha vida. Apenas me falta fazer um exame genético para perceber se os meus filhos poderão vir a sofrer da mesma doença. Agora percebo muito mais sobre o meu glaucoma e respeito-o como a um ser dentro de mim, que precisa de atenção, de cuidados.
A minha oftalmologista não acha necessário que eu seja submetida a uma nova operação por enquanto. É possível que a catarata esteja a prejudicar a minha visão, mas não o meu glaucoma. A minha tensão estava em 10 mm Hg da última vez que medi, apesar dos meus campos visuais continuarem bastante negativos. A informação positiva é que comparando com os meus exames mais antigos, não houve evolução nos meus campos visuais. Portanto, a minha visão estagnou. A cirurgia que me foi feita chama-se trabeculectomia e o meu diagnóstico: glaucoma juvenil de má formação congénita do ângulo.
Jamais vou poder recuperar a visão perdida, mas poderei evitar uma cegueira completa. A falta de diagnóstico na infância levou a que desconhecesse a existência do glaucoma e assim perdido 45% da visão. Se tivesse tido conhecimento dele, poderia nunca ter sido submetida a uma operação, ou nunca ter perdido a visão ou mesmo necessitar de óculos. Poderia viver uma vida sem ter de tomar gotas. Ele estaria sempre lá, mas como um apêndice e não como uma cirrose.
O que posso dizer: não se deve jamais ignorar o glaucoma, deve-se procurar o especialista adequado, procurar as gotas com que melhor nos adaptamos e "ter um olho sempre à espreita", ou seja, medir a tensão e fazer exames de rotina de vez em quando. Nem sempre encontrei os melhores médicos, mas também encontrei bons médicos. Essencialmente aprendi que a pessoa que melhor deve estar informada sobre o glaucoma, somos nós próprios e assim obter do oftalmologista as respostas às nossas questões, confusões, receios. Parece-me que é uma doença pouco explorada e cada dúvida nossa é um estímulo para o oftalmologista curioso encontrar respostas.

Faz a tua descoberta e cuida do teu glaucoma, é o que posso desejar a quem alguma vez se deparar com ele. Não o receies, pois se for bem tratado, não te fará mal.


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